Patrimônio em movimento

Queijos artesanais, o saber-fazer

Descrição
O saber-fazer é um conhecimento tácito, construído a partir da articulação entre subjetividade e prática dentro de uma lógica específica de tempo e espaço. Ele pode existir em diferentes áreas a partir de ações geralmente voltadas para o trabalho e para um ofício. De acordo com Sennet (2015), para que o saber-fazer tenha continuidade é preciso que seja transmitido, mas como se transmite um conhecimento, algo tão individual? Na prática ele é intransferível, cada saber-fazer é único. Suas manobras, sentidos, sensações e técnicas não serão encontradas em um livro de receitas, reproduzidas em um curso, nem podem ser doadas de pai para filho. Entretanto, um saber-fazer se aprende, ele é construído no gerúndio, como aponta Dutra (2002), se aprende vendo, ouvindo e fazendo.
Essa aprendizagem é construída em um tempo e espaço específicos, normalmente estão articulados com o lugar onde o ofício é exercido no dia-a-dia. Essa construção requer tempo e uma execução prática suficientemente rotineira até que o artesão desenvolva seu próprio conhecimento e autonomia sobre o que produz. Esse processo rotineiro constrói o saber-fazer e suas astúcias. A astúcia do saber-fazer é a inteligência construída a partir dos interstícios cotidianos da execução do ofício, Détienne e Vernant (2008) a associam à Métis, deusa da astúcia.
Para resgatar e explicar a ideia de Métis, Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant (2008) recorreram a diversas passagens da mitologia grega, segundo a qual Métis foi a primeira esposa de Zeus e a responsável por grande parte de seus poderes. Deusa da astúcia, Métis conseguia com sua inteligência transformar-se em diferentes seres e objetos, flexibilidade que dava a ela a capacidade de lidar com diferentes situações. Contudo, essa inteligência era ao mesmo tempo temida e subjugada pelo próprio Zeus, que como alternativa para o medo de ser derrotado pela Métis, pediu que ela se transformasse em uma gota de água e a engoliu, ficando com toda a inteligência astuciosa para si.
É possível fazermos diversas analogias entre a Deusa da Astúcia e o saber-fazer artesanal, entre eles o saber-fazer queijos artesanais se encaixa bem ao que mito da Métis representa. Um saber-fazer minucioso, repleto de astúcias aprendidas ao longo dos anos a partir da relação cotidiana entre queijeiros, matéria-prima e utensílios. Esse saber-fazer artesão dá origens a queijos que não podem ser reproduzidos de forma padronizada, nem em grande escala, cada produto é único. No entanto, os queijos artesanais brasileiros sofrem sanções legais em sua comercialização, tais proibições se justificam pelo processo de fabricação desses queijos, que envolve práticas e matéria-prima consideradas perigosas à saúde humana.
A partir da década de 1950, começaram a ser pensadas no Brasil leis baseadas em normas vigentes nos Estados Unidos (CRUZ e MENASCHE, 2014), guiadas pela ideia de pasteurização. As descobertas da ciência e as regras sanitárias que a sucederam, construíram o que Paxson (2008) chama de cultura da pasteurização, que se configura em um cotidiano embalado por regras, noções sanitárias e de higiene específicas. Dentro dessas regras o saber-fazer queijos artesanais não se encaixa, e para que os queijeiros e queijeiras continuem a exercer seu ofício precisam modificar suas práticas, ou ficarem na clandestinidade.
Há no Brasil quase cem queijos artesanais tradicionais, conforme um mapa produzido pelo movimento slow food. Dentro da fabricação de todos estes queijos artesanais existem vários utensílios, matéria-prima e práticas que são proibidos. Qualquer utensílio feito de madeira, por exemplo, não pode ser utilizado na fabricação dos queijos artesanais, de modo que formas, bancas e prensas de madeira – de onde é recolhido o pingo – devem ser substituídas por similares feitos de outro material. Outro exemplo é a proibição do leite cru na fabricação dos queijos artesanais, de acordo com as normas, queijos feitos a partir desta matéria prima devem ser curados por, no mínimo, sessenta dias.
É sabido, como aponta Santos (2013), que devido a obrigatoriedade do uso de bancas de ardósia e formas de plástico, que os utensílios de madeira têm sido progressivamente substituídos e retirados das propriedades que produzem queijos. Por mais que a produção do queijo não dependa exclusivamente dos utensílios de madeira, eles fazem parte da tradição, de uma cultura, compõe a execução das técnicas e integram o saber-fazer artesanal, pois como afirma Meneses (2006), materialidade e imaterialidade são partes indissociáveis do processo de fabricação dos queijos artesanais. Os utensílios de madeira, interligados aos conhecimentos e saberes tradicionais, constituem o saber-fazer e a Métis (DÉTIENNE & VERNANT, 2008) a ele relacionada. Se os utensílios de madeira sempre fizeram parte da produção desses queijos, quando são substituídos todo o saber acumulado ao longo do tempo e a astúcia a eles relacionada sofrem um rompimento.
Assim como a Métis tinha sua inteligência astuciosa subjugada e desvalorizada, o saber-fazer envolvido na fabricação dos queijos artesanais, embora sejam praticados há séculos e possuam sua eficácia garantida, estão na margem do conhecimento instituído através das normas sanitárias como corretos. É o que ocorre com o uso dos utensílios de madeira, do leite cru, ou mesmo do não uso de luvas durante a fabricação dos queijos. Essas práticas e itens não integram o saber-fazer até os dias atuais por acaso. A inteligência astuciosa de produtores e produtoras de queijos artesanais os mantiveram ali por serem eficazes e terem sentido na fabricação dos queijos. Essa noção pode ser corroborada pelo que afirmou Mauss (2009) sobre as tradições serem as inovações que deram certo. Contudo por ser uma tradição construída a partir de um conhecimento não convencional, ela não é respeitada e se mantém marginalizada perante normas sanitárias e seus fiscais.

Patrimônio Cultural Imaterial
Diante de mudanças incisivas previstas pelas normas sanitárias os produtores do Queijo Minas Artesanal se mobilizaram em prol do registro de seu modo de fazer como Patrimônio Cultural do Brasil. Em 2008 o Queijo Minas Artesanal se tornou o primeiro queijo registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e até o momento é o único queijo brasileiro que possui seu modo de fazer registrado pelo órgão. No entanto, há em andamento o processo de registro do modo artesanal de fazer o queijo Serrano, fabricado por queijeiros e queijeiras dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O registro desses bens, embora seja algo almejado pelos produtores, não é o suficiente para garantir a liberação do comércio desses queijos artesanais (CRUZ, 2012). Ao mesmo tempo, é uma forma de legitimar, reconhecer, salvaguardar e valorizar o saber-fazer artesanal envolvido na fabricação destes produtos. Além disto, o registro serve para munir queijeiros e queijeiras de argumentos – respaldados pelo próprio Estado, representado aqui pelo IPHAN – para reverterem a lógica imperante nas normas sanitárias que, se continuarem vigentes da maneira como está, pode modificar ou extinguir efetivamente o saber-fazer e, consequentemente, os queijos produzidos a partir dele.

Proteção
As normas sanitárias somadas ao aumento da concorrência e pressão das indústrias de laticínios sobre os queijeiros, agem sobre a continuidade da fabricação dos queijos artesanais. Muitos queijeiros renunciam aos modos tradicionais e artesanais, a partir dos quais sempre fizeram seus queijos, para poderem se encaixarem nas normas e saírem da clandestinidade. Outros acabam optando por parar a sua produção em prol de vender o leite produzido em suas propriedades para laticínios das regiões onde moram. Há ainda alguns queijeiros que param não só a produção de queijo, como também a criação de gados e mudam o ramo de trabalho. Ações que ameaçam diretamente o saber-fazer queijos artesanais em todo o país. Conforme dito anteriormente, o Queijo Minas Artesanal é o único queijo registrado pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial até o momento. Dentre as medidas de Salvaguarda para este queijo está o apoio por parte do instituto a políticas que incentivem o modo artesanal de fazer o Queijo Minas. No registro do modo artesanal de fazer o queijo minas torna-se evidente a expectativa de que parcerias com universidades, associações e organizações pudessem desenvolver pesquisas e ações que produziriam um movimento de valorização ainda maior deste queijo.
As expectativas foram, de certa maneira, cumpridas. Não apenas o Queijo Minas Artesanal foi valorizado desde seu registro no ano de 2008. Os demais queijos artesanais e tradicionais brasileiros, também tiveram alguma valorização ao longo destes anos. É possível destacar alguns grupos como SertãoBras, Slow Food e Comer Queijo que atuam na descoberta, divulgação e valorização dos queijos artesanais em todo o país. Além do número crescente de pesquisas universitárias sobre os queijos, nas mais diversas áreas do conhecimento – Humanas, Biológicas e Agrárias – que acabam por gerar resultados tanto para a prática no campo, quanto para argumentar frente as normas sanitárias que proíbem sua comercialização.

Bibliografia

BRASIL. Decreto nº 30.691, de 29 de março de 1952. Aprovao novo Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária deProdutos de Origem Animal. Diário Oficial da União.7 jul. 1952.

BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Portaria nº 146 de 07 de março de 1996. Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade de Queijos e Regulamento Técnico Geral para a Fixação dos Requisitos Microbiológicos de Queijos. Aprova os Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade de Produtos Lácteos. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 11 mar. 1996. Seção1, p. 3977.

CRUZ, Fabiana Thomé da. Produtores, consumidores e valorização de produtos tradicionais: um estudo sobre qualidade de alimentos a partir do caso do queijo serrano dos Campos de Cima da Serra- RS. Porto Alegre, RS; 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural).

DÉTIENNE, Marcel; VERNANT, Jean Pierre. Métis- as astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Maneiras de fazer, modos de proceder: a tradição reinventada do pão de canela na serra da mantiqueira, Minas Gerais. Revista Horizontes Antropológicos: ano 18, n. 38, p. 237-253, jul./dez. 2012.

MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2009.

MENESES, José Newton Coelho de. Queijo artesanal de Minas: patrimônio cultural. Dossie Interpretativo, Belo Horizonte, 2006.

PAXSON, Heater. Post-Pasteurian cultures: the microbiopolitics of Raw-Milk cheese in the United States. Cultural Anthropology, Vol. 23, Issue 1, pp. 15–47. 2008.

SANTOS, Jaqueline Sgarbi. Dilemas e desafios na valorização de produtos alimentares tradicionais no Brasil: um estudo a partir do queijo do serro, em Minas Gerais, e do queijo serrano, no Rio Grande do Sul. 2014. Tese (Doutorado em Sistemas de Produção Agrícola Familiar) – Universidade Federal de Pelotas – RS.

MENASCHE, Renata. Importância dos utensílios tradicionais na elaboração do queijo artesanal da região de Serro, em minas gerais, brasil. XV ENPOS. Pelotas : XV ENPOS, 2013

SENNETT, Richard. O artífice. 5ª edição – Rio de Janeiro: Record, 2015.

Pesquisa e texto
Belisa Lamas Gaudereto, Doutorado em Ciências Sociais, IFCH
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