Patrimônio em movimento

Samba de Roda do Recôncavo Baiano

    Foto de Luis Santos/Acervo Iphan
Descrição
O Samba de Roda ocorria principalmente em 33 municípios na região do Recôncavo Baiano quando o Iphan convidou o etnomusicólogo Carlos Sandroni a realizar o seu inventário para fins de Registro (SANDRONI, 2007: 29). A referência mais antiga conhecida (BUDASZ, 2001: 51) são versos de Gregório de Matos (1636-1696) que se refere à umbigada, nas danças do banquete na festa de Nossa Senhora de Guadalupe:
“Porém por se desquitar
foi-se bailar o cãozinho,
e como sobre o moinho
levou tantas umbigadas,
deu em sair às tornadas
a puro vômito o vinho.”

O pesquisador sintetiza que esta forma de expressão articula música e dança da tradição de africanos escravizados, com poesia e instrumentos musicais portugueses (idem, p.29). Como se sabe, a cultura afrodescendente é marcada historicamente pela violenta exploração de africanos nos engenhos de cana, no contexto da ordem social escravocrata, sustentada no aprisionamento de indígenas e tráfico negreiro, para o trabalho no solo de massapê da região nordeste. Durante muito tempo, o termo batuque abrangia todos os ritmos da música negra. No fim do século XIX, conforme essas expressões culturais foram se difundindo, a palavra samba – cuja origem ainda se discute – começou a ser empregada de forma mais específica.

“Entre esta data [1838] e meados dos anos 1920, há registros de atividades musicais e coreográficas chamadas de samba em vários pontos do Brasil: Bahia, Ceará, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro. (...) tradição que vem passando de geração pra geração. Foi meu bisavô quem trouxe para aqui para o Brasil, porque ele foi um dos escravos que, quando o povo veio da África, ele veio como sambador, e aqui passou pro meu avô e passou pro meu pai e passou pra mim, e por isso a gente não quer deixar acabar porque já tá na terceira ou quarta geração” (Sambador Zeca Afonso, em São Francisco do Conde). (SANDRONI, 2007: 69 - 72)

Além de ser executado coletivamente de forma mais descompromissada, com a finalidade de divertir, o Samba de Roda é associado aos ritos de candomblé. Por exemplo, em agosto, ele está presente na Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, na cidade de Cachoeira (MARQUES, 2003); em setembro, na Festa de São Cosme e São Damião, no Recôncavo em geral. A música instrumental e a dança são executadas predominantemente, mas nem sempre, por homens e mulheres, respectivamente. É recorrente o uso de instrumentos
de percussão, como o pandeiro e o prato-e-faca. A viola machete é um dos instrumentos mais característicos do samba de roda, assim como palmas e canto coletivo, com característica repetitiva e responsorial. Os passos de dança são vários; contudo, o miudinho - um sutil sapatear para frente e para trás em sincronia com o requebrado dos quadris - é o mais típico. Outro movimento muito presente é a umbigada. As coreografias são variadas. Por exemplo, no grupo Samba da Capela, da cidade de Conceição do Almeida, formam-se filas de casais para dançarem um na frente do outro. Entretanto, a sequência mais característica é executada circularmente (em roda) predominantemente entre mulheres, mas também com a participação de homens; ligada à alternância de escolha, dança-se um de cada vez dentro da roda: a umbigada, que varia de acordo com o grupo sambador, é um convite para outra pessoa dançar. (SANDRONI, 2007: 23). O samba de roda se diferencia de outros gêneros próximos, como o samba de chula, samba rural.
Tem sido, como os demais, pouco estudado pelos pesquisadores brasileiros e sua continuidade como a desses gêneros mais próximos vem sendo fortemente abalada pelas condições de vida precárias de seus praticantes, pelo baixo prestígio atribuído pelas elites das localidades onde é praticado e pela ausência de políticas de salvaguarda. Os principais acervos de gravações encontram-se na Alemanha e nos
Estados Unidos (SANDRONI, 2007). Uma das principais condições para sua continuidade é o saber-tocar e saber-fazer a viola machete. Por isso, algumas medidas foram tomadas por agência de proteção ao patrimônio cultural com o objetivo de revitalizar esses saberes. Entre elas, o IPHAN patrocinou em 2005 uma oficina de transmissão e documentação do saber-tocar a viola machete, organizada pela Casa de Cultura de São Francisco do Conde e ministrada pelo Mestre Zé de Lelinha.
Descrição: Descrição: https://lh5.googleusercontent.com/v43ctxL4MbU0tgXeh2IRfMzFd0SfPsARtNHN23l3WBbzKCGCLKe6MSzOQXKj-oNliFiu3k0gaUmBIEqR36iqKjjZQ_UA3Csx75L4_Qm0YkpzH2MJ3rKSXOv6uObSdzQy6JydqF8gUSy4YtJM
Foto de Luis Santos/Acervo Iphan

Continuidade

No dossiê para Registro do Samba de Roda do Recôncavo Baiano como Patrimônio Cultural Brasileiro (IPHAN) organizado por Carlos Sandroni, encontram-se depoimentos sobre contradições encontradas no berço do samba brasileiro:

“As pessoas quando vêm pra ouvir o samba de roda, não ouvem um samba de roda totalmente original, por falta de apoio, porque nós não temos o apoio mesmo pra o machete. Esse machete é difícil de ser encontrado e até hoje nós não conseguimos formalizar o samba ideal, o instrumento ideal” (Carlos M. Santana, dito Babau, São Braz). (SANDRONI, p. 77)

Devido à migração de baianos para o Rio de Janeiro e outras regiões do país no final do século XIX, o Samba de Roda sofreu modificações em sua estrutura rítmica, melódica e harmônica. Logo no início do século XX, deu origem a uma derivação bastante conhecida. Tia Ciata, mãe-de-santo, que saiu da Bahia para viver no Rio de Janeiro no início do século XX reunia os migrantes para as rodas de samba e o candomblé em sua casa na Rua da Alfândega, na Cidade Nova. Figuras como João da Baiana e Pixinguinha frequentaram sua casa. Nesse novo contexto, flauta, violão e cavaquinho foram incorporados às manifestações musicais que ela trazia, dando origem ao que se tornaria tão importante para a cultura carioca, e fonte de renda para o rádio, indústria fonográfica e alguns intérpretes do início daquele século: o samba carioca.
Com a indústria cultural influenciando as novas gerações, hoje em dia, quando um jovem gosta de samba, ele já não escuta ou participa do Samba de Roda, mas passa as ramificações do samba carioca (partido alto, por exemplo) ou até o pagode (a partir da década de 80), que é sua variação mais recente. Tornou-se recorrente o esquecimento e o não-reconhecimento da importância da raiz do samba em geral. Os próprios instrumentistas, por exemplo, que tocam viola machete são raros. Augusto Lopez, de São Braz, relata no Dossiê:

“Hoje em dia nós não temos a viola principal como era antigamente: era o machete, era a viola pequenininha de pau. Ela era necessária pra esse samba da gente. Hoje em dia tem aquela viola [paulista] que não vai dar a mesma tonalidade que vai dar aquela viola antiga. E se quiser uma daquela tem que encomendar no Maranhão ou em outro lugar. É como o pandeiro de tarraxa: nós toca, mas era [de] couro de cobra, prego, como João ainda tem, Babau tem. O samba nativo é esse, e a viola natural não é essa que nós toca não, é o machete. E essa nós temos que desencavar de onde tiver, pra botar o samba nativo mesmo como era.” (SANDRONI, op. cit. p.77)

Proteção

O Registro do samba de roda como patrimônio cultural brasileiro (IPHAN, 2004), sua proclamação como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade (UNESCO, 2005) e inclusão na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Intangível (UNESCO, 2005 e 2007 respectivamente) contribuíram decisivamente para sensibilizar os jovens das regiões onde ele é tocado, assim como o público do Brasil inteiro e de outros países para a beleza dessa forma de expressão. Essas medidas também atraíram pesquisadores e a mídia, difundindo seu interesse entre os que se identificam e buscam o conhecimento das raízes culturais brasileiras.

Esse gênero musical era desvalorizado pelas políticas culturais do Estado. Quando Carlos Sandroni, professor do Núcleo de Etnomusicologia da Universidade Federal de Pernambuco, começou com sua equipe a pesquisa para identificação do samba, verificou que ele ocorria em praticamente todo Recôncavo Baiano. Isso se explica, mais uma vez, pela história local.

“O registro de um patrimônio imaterial como o samba-de-roda exige o mapeamento de um percurso que se inicia com os africanos que foram escravizados e trazidos para trabalhar nos engenhos e lavouras de cana- de-açúcar do Recôncavo (...)” (CANTARINO: Revista Eletrônica do Iphan).

Descrição: Descrição: https://lh4.googleusercontent.com/7R1Ga9SJNS-J-aRBmETK8m-ul8PnKwcbk_EPS-El8D4kuEKfS348QkfSYcSx9uCgtAf6dpxLxHV-6Z-rV01rYMtrNlwsEgTQ5xiXi0BTi2z2am2_g-M7g5wjGFQ5YjVhRvgTrB9V6gnQOEm4
Foto de Luis Santos/Acervo Iphan

Durante as reuniões de agentes do IPHAN com a comunidade, as pessoas se inteiravam da importância do registro, tomando consciência de algo que já reunia as principais demandas locais. Sandroni conclui a primeira etapa do trabalho de campo (20 de julho e 12 de agosto de 2004) necessário para que o samba de roda fosse registrado como Patrimônio Cultural do Brasil. A solicitação foi endossada pela Associação Cultural do Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas, pelo Grupo Cultural dos Filhos Nagô e pela Associação de Pesquisa de Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo, e aprovada pelo IPHAN em 13 de agosto de 2004. No mesmo ano, se inicia a formação da Associação dos Sambadores do Recôncavo, congregando os grupos comprometidos com o Registro. Essa associação se tornou essencial para o processo de salvaguarda do samba-de-roda. Reconhecendo a importância da participação de mulheres nesta forma de expressão, a entidade se redefiniria, em 2005, como Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia-ASSEBA (Catálogo dos Sambadores e Sambadeiras do Samba de Roda, em http://www.asseba.com.br). O processo de salvaguarda desencadeado pelo IPHAN no Recôncavo vem ganhando autonomia frente aos projetos governamentais. Esse fortalecimento é importante porque um sério desafio a ser enfrentado pelos praticantes e detentores do samba de roda é a manutenção da continuidade desse modo de expressão sem dependência da tutela governamental.

Uma das principais ações de salvaguarda tem sido a manutenção dos conhecimentos relativos à construção e conservação da viola machete. A necessidade de conservar os conhecimentos relativos à produção de objetos necessários à continuidade do patrimônio imaterial é muitas vezes desconsiderada pelas agências públicas. Nesse sentido, deve-se enaltecer o exemplo dado pela Associação Japonesa para a Conservação de Monumentos Arquitetônicos (http://www.bunkenkyo.or.jp/en/traditional.html) que tem investido na continuidade dos conhecimentos relativos a técnicas construtivas tradicionais, para a necessária conservação de edificações antigas naquele país.

Por representar o sumo da identidade brasileira, sua afro-descendência, a proteção do samba de roda foi medida acertada. Esse modo de expressão é a raiz que deu origem, musicalmente, a um dos ritmos brasileiros mais reconhecido no mundo. Não fossem as ações de salvaguarda realizadas pelas agências de patrimônio, com grande participação e empenho dos detentores e praticantes e forte repercussão em diversos setores da sociedade brasileira, o Samba de Roda poderia ter sido mais um dos elementos culturais – tão essenciais para a expressão e entendimento da identidade brasileira – extintos em pouco tempo.

Proteção oficial

- O Samba de Roda do Recôncavo Baiano foi inscrito no Livro de Registro das Formas de Expressão pela Presidenta do Conselho do Patrimônio Cultural Jurema Machado, do IPHAN, como Patrimônio Cultural Brasileiro em 5 de outubro de 2004. Inscr. nº 3, de 10/05/2004
Link: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Samba_roda_reconcavo_titulacao.
pdf

- Pela importância da expressão na história brasileira, em especial no desenvolvimento da música popular, e seu alarmante perigo de se perder por falta de estímulo para a prática, foi incluído na III Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade (2005) (SANDRONI, Carlos. Samba de roda, patrimônio imaterial da humanidade. Estud. av.[online]. 2010, vol.24, n.69 [cited  2019-08-15], pp.373-388. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142010000200023&lng=en&nrm=iso>.
ISSN 0103-4014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200023.)

- Após esse processo complexo de candidatura, no qual o Plano de Ação foi fomentado por diversas estratégias (tais quais incluíam a organização civil dos sambadores, produção do dossiê, transmissão, projetos musicais, documentações, etc), o Samba de Roda do Recôncavo Baiano foi incluído na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Link: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-cultural-
heritage-list-brazil/samba-de-roda-do-reconcavo-baiano/

Detentores
ASSEBA - Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia Solar Subaé - Casa do Samba - Centro de Referência do Samba de Roda. Rua do Imperador, Nº 1; CEP: 44200-000 - Santo Amaro, Bahia. Contato: +55 (75) 9134.9127 e 9147.8507. asseba@gmail.com. Informações sobre cerca de 30 grupos podem ser encontradas em http://www.asseba.com.br

Bibliografia
Alencar, R. R. (2010). O samba de roda na gira do patrimônio. Campinas: Tese (Doutorado). Departamento de Antropologia Social, UNICAMP.

Budasz, R. (2001). The five-course guitar (viola) in Portugal and Brazil in the late seventeenth and early eighteenth centuries. California - EUA: Tese de doutorado, Graduate School University of Southern California (EUA).

Cantarino, C. (s.d.). Revista Eletrônica do Iphan. ISSN: 1908-3965. Fonte: Revista Eletrônica do Iphan.: http://www.labjor.unicamp.br/patrimonio/materia.php?id=64

Carneiro, E. (1961). Samba de umbigada. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclóre Brasileiro.

Marques, F. (2013). Samba de Roda em Cachoeira, Bahia: uma abordagem etnomusicóloga. Rio de Janeiro : Dissertação de mestrado em música - UFRJ.

Nunes, E. S. (2002). Cultura popular no Recôncavo baiano: a tradição e a modernização no samba de roda. . Salvador : Dissertação de Mestrado em Letras - UFBA.

Pereira, M. (2007). Ritmos brasileiras para violão. Rio de Janeiro: 1ª edição.

Sandroni, C. (2001). Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar.

Sant;anna, C. S. (2007). Samba de roda no Recôncavo Baiano. Brasília: IPHAN.

Silva, R. d. (2010). Samba de umbigada: considerações sobre jogo, performance, ritual e cultura. Em Textos escolhidos de cultura e arte populares (pp. 147-163). Rio de Janeiro.

Siqueira, A. M. (2017). A produção da viola machete e a política de salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Santa Amaro, BA: Programa de Doutorado em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo.

VER GLOSSÁRIO para as seguintes definições:

- Batuque; Chorinho; Choro; Detentor; Lista Representativa do Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade; Miudinho; Pagode; Samba; Samba carioca; Samba de chula; Umbigada; Viola machete; Patrimônio Cultural Brasileiro; Patrimônio cultural imaterial; Patrimônio cultural intangível; Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade; Registro; Salvaguarda.

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